Construindo mundos
E no auge de uma madrugada qualquer, entre leituras e devaneios, lembro de algo que talvez tenha sido o fato mais importante de minha vida, o que me fez ser o que sou e ainda me fazendo...
Aos meados dos meus 5 anos, perdi a minha avó; fazendo com que meus pais passassem a me deixar sozinha em casa, mas com a vizinha "de olho"; mas para mim, eu estava sozinha em casa e com todas as responsabilidades. Colocava meu café da manhã semi-pronto e arrumado na mesa, preparava o meu lanche da tarde e, pronta, esperava minha mãe para ir para a escola.
Neste meio tempo de dia, muita coisa acontecia. Não sei se por castigo ou educação, certo período meus pais trancavam a televisão dentro do quarto deles. E, então, eu passava uma manhã inteira sem a telinha companheira. (Mas que crueldade, deixar uma criança sozinha em casa e ainda sem televisão!)
Então, o que eu fazia nesse meio tempo de dia?
O óbvio a se fazer, talvez. Eu criava mundos.
Todos os dias, das 8h às 11h30, eu inventava histórias e personagens. O suco instantâneo de uva na taça de cristal, com a caneta bic de piteira, eu era uma nobre dama, sentada à beira da porta a observar a rua e seus passantes. Quem olhava de longe, mal imaginava o que acontecia por ali... O casaco velho de adulto era uma enorme capa que dava poderes da invisibilidade. E, assim por diante, outras tantas personagens, personalidades...
Mais tarde, já por volta dos 8 anos, outra “punição”. Essa eu lembro que se tratou de um castigo mesmo. No mesmo ímpeto de rua, eu costumava ficar sentada na beira da janela da casa; numa altura maior que 3 metros. Se eu tinha medo? Acho que não, pois tomava café na janela, almoçava na janela, via o mundo todo na janela. Até que a vizinha fofoqueira contou à minha mãe: Gislene fica o dia todo pendurada naquela janela em tempo de cair. É muito perigoso.
Mas como pode uma janela ser perigosa?, pensei.
Hoje, sim, janelas são perigosas. Principalmente, se fechadas.
Nesse período eu já estava com televisão no quarto, mas não tinha tanto interesse assim quanto eu tinha pela janela. E então, qual foi o castigo pós delato da vizinha? Sem janela por tempo indeterminado!, disse meu pai. E o pior: ele tinha um amigo, que não iria dizer quem era, para ficar me vigiando o dia inteiro. Anos depois acredito que esse fiscal na verdade nunca existiu.
Parece inacreditável, nunca soube de castigo semelhante em outras famílias; meu pai pregou, sim, colocou pregos na cortina ao redor de toda a janela. Absurdo, não?! E ali começou mais uma fase; com televisão, mas sem janela. Nos primeiros dias, a tristeza era enorme, chorava por tamanha revolta. Mas um dia a calmaria chegou. Não a acomodação.
Então, sem janela, criei janelas.
Agora, os personagens era mais maduros, eu tinha palco, plateia e aplausos. Nunca tive amigo imaginário. Sabia que estava sozinha e era sozinha que eu fazia aqueles mundos. Todo um guarda-roupa em cima da cama. Não eram roupas, eram figurinos. O espelho? Não era um vidro com o meu reflexo. Era cada personagem e suas reflexões. Tinha, inclusive, personagem que brigava entre si ou mesmo sorria e chorava. Essa criança é louca. Talvez.
Mas dessa vez as histórias ganharam outro espaço, o papel. E comecei a arquivá-las em diários velhos. Nunca gostei de “escrever em diários”. Primeiro, para nunca correr o risco de alguém ler e descobrir todos os meus segredos. Segundo, se eram segredos, não poderia contar para ninguém, nem mesmo um caderno. Então, eu contava minhas histórias em forma de códigos, histórias e personagens.
Eu inventava realidades reais.
Mas o castigo ainda era cruel. Não estava contente. Até que a sutil curiosidade me fez observar uma pouco mais de perto como estava pregada na parede a cortina. Eis a grande descoberta: os pregos era pequenos e finos, com o menor esforço era possível atritá-los na parede que corroía e folgava o buraco. Fiz, como quem nada queria, no primeiro prego. Consegui tirar. E, com a cautela de um criminoso, tirei prego por prego. Abri a janela. Mas e o amigo de meu que estava a vigiar? Ah, vale a pena correr o risco. Lembro que passei os primeiros momentos tentando identificar quem seria o possível vigia; qualquer um era suspeito. E assim, voltei ao deleite de ficar horas e horas pendurada na janela. Mas e quando meus pais chegassem em casa? Não seja tola, é só colocar os pregos de volta, Gislene! 17h30, horário previsto para minha mãe chegar em casa. Prego a prego, sem deixar nenhum vestígio. Procurava o furo certo na cortina e lá prendia novamente à parede. Sem janela! E assim fiquei as férias inteira, entre abrir a janela retirando os pregos criminosamente, a espreita do vigia e, ao final do dia, fechá-la novamente. Se meu pai descobriu? Nunca. Mas o peso da consciência veio junto com a idade; e já nos meus quase vinte anos, numa corriqueira reunião de família, revelei meu grande segredo! Era o meu triunfo.
Hoje, tenho televisão, janelas e portas abertas. Mas ainda crio mundos e invento histórias. E, o mais importante: sei bem do perigo de uma janela fechada.
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A caixa de brinquedos
Era uma vez uma criança a brincar. Tinha uma caixa de brinquedos gigante. Ali estava o seu mundo. Cresceu procurando companhia para brincar. Às vezes, encontrava alguém divertido e interessado em sua caixa de brinquedos. Esse alguém chegava e, ela animava-se e tirava euforicamente todos os brinquedos da caixa. Ia mostrando um por um. Contando todas as histórias que haviam por trás de cada brinquedo. Brincavam. E brincavam. Mas logo esse alguém resolvia ir embora. E ia. Então, ela tinha que arrumar toda a caixa. Era sempre assim. Alguém ia embora e ela arrumava tudo novamente. Sempre arrumava sua caixa de brinquedos sozinha. E ainda tinham casos em que o alguém, depois de brincar, ia embora tendo quebrado ou perdido algum brinquedo dela. Ou então chegava querendo brincar; mas, logo, se mostrava entediado. E, ela, sempre entusiasmada com tantas histórias. Mas, no final, sempre arrumava a caixa de brinquedos sozinha. Um dia ela cresceu, arrumou muito bem arrumada a sua caixa de brinquedos. Até encontrou companhias para brincar. Mas não abria sua caixinha de brinquedos por nada. Por ninguém. Agora ela brinca sem tirar seus brinquedos da caixa. E, quando o alguém vai embora, corre para sua caixa e desbanda a brincar sozinha. Assim ela aprendeu a se divertir. E como bem sabe arrumar sua caixa de brinquedos sozinha. Ela arruma. Ela desarruma. É a sua caixa. É o seu mundo. E de mais ninguém.
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- Mãe! Vem cá... tô com medo!
(...) E um cafuné e um beijo no rosto lhe convencem que não há bicho papão no guarda-roupa nem debaixo da cama. Pois bem... Parece que crescer é não ter a quem gritar por ter um bicho papão no armário ou debaixo da cama. Gritamos a nós mesmo e tentamos nos convencer sozinhos de que não há o que temer. - Vai. Volta a dormir! Amanhã é outro dia! No entanto, para a crueldade ser maior, parece que a quantidade de bicho papão aumenta com o passar dos anos. Só não os chamamos mais de bicho papão e não estão mais no guarda-roupa nem debaixo da cama. Nós crescemos. Mudamos. E os medos também.
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